Capítulo 3 - Você me convenceu tão rapido que agora estou perdido, mas de uma coisa eu sei, eu vou lutar até a ultima batata brotar na terra!
Eu acompanhei aquela ave por mais ou menos meia hora, imaginando a confusão que havia ficado lá atrás.
Não era nada normal para as pessoas verem um cachorro tamanho família e um gorila enorme no meio da cidade, por cima de tudo brigando. Gente correndo, tirando fotos e isso me fez pensar na confusão que poderia causar se eu fosse um deles, mas nada me preocupava mais do que a bronca que eu iria levar quando chegasse em casa.
Eu não sabia a hora porque a bateria do meu celular tinha acabado e não tinha como falar com minha mãe, e mesmo que quisesse seria estranho de explicar onde estava.
“Oi mãe, eu estou aqui no meio da rua te ligando de um orelhão, é, to seguindo um homem pássaro que consegue se transformar em animais, não se preocupa não, volto antes da janta!”
Percebi que havíamos chego aonde quer que fosse, porque o pássaro diminui a altura que estava e ficou bem próximo de mim. Olhando a minha volta me perdi completamente.
Havíamos ido além de onde eu conhecia, enquanto olhava tentando reconhecer algo que pudesse dar localização, um flash clareou minha vista e meu amigo mendigo Jason estava novamente ao meu lado. Joguei a blusa para ele e começamos a caminhar pela rua,ele vestido daquele jeito, não se importando que pudessem vê-lo.
Olhei novamente em volta prestando atenção nas pessoas e nas lojas que nos cercavam naquela rua reta e pelo que parecia, sem saída.
Não havia ninguém!
– Onde estamos? – perguntei tentando disfarçar o certo medo na voz.
Havia andando todo o percurso tão inconsciente de qual caminho estava seguindo que nem parei realmente para ver onde estava.
– Em algum lugar entre o fim do mundo e o começo de outro – disse ele sorrindo, fazendo a barba mexer e fazer um barulho estranho, de palha mechendo – Bom, não se preocupe com isso, o mais importante é chegar à toca.
Não perguntei a ele o que era isso, apenas continuei seguindo e torcendo para que tivesse todas as minhas respostas rapidamente para poder sair dali.
O lugar era macabro, varias lojas com aspectos de velhas estavam fechadas, parecia não habitada há tempos, com prédios de poucos andares com a mesma aparência.
Jason parou quase na metade do que do que julguei ser uma avenida, na frente de um portão de ferro verde com a tinta descascada, todo enferrujado. Quando o empurrou, fez um rangido forte e agudo que ecoou por toda a rua, mas ele não ligou.
Logo quando entrei, percebi que não ia para nenhum tipo de casa, o portão caia direto em uma ladeira de barro alaranjado com paredes estreitas o sulficiente para se descer e conseguir se apoiar.
Jason pulou pelo barranco e começou a deslizar como se fizesse aquilo ha tempos, e provavelmente fazia, desci segurando na parede para nao cair.
O barranco era pequeno como se fosse um corredor apertado, mas ao invés de escadas ou uma rampa, era terra fortemente alaranjada.
Não conseguia ver o que tinha no fim dele, mas me parecia que saia em um tanto de mato e quando terminei de descer isso me foi confirmado.
Jason estava parado com mato seco, que faz você se coçar bem rápido, até os joelhos e olhava para frente esperando que eu chegasse.
– Sabe, o homem consegue acabar com as coisas que lhe é importante mais rápido do que imagina, esse é um dos poucos lugares que ainda não foi industrializado, ou destruído, a natureza ainda vive fortemente aqui.
Olhei para aquele mato seco e feio, mas não falei nada.
– E esse lugar fica onde mais ou menos? – perguntei olhando em volta, realmente havia mato em todo lugar que eu olhava, exceto bem no centro do matagal, onde ele sumia, fazendo um buraco.
– Como eu disse, não importa, vamos – apressou ele, andando entre o mato levantando as pernas até a altura que seu pé descalço aparecer, dando longas passadas.
– Por que estamos aqui? Não disse que precisávamos ir para a toca? – perguntei a ele quando estávamos perto do buraco.
– Estamos indo, venha você vai precisar de equipamento – ele respondeu calmamente, fazendo o contorno entre o buraco.
Percebi quando havia me aproximado, que aquilo não era um buraco, mas sim um lago! Como podia ter um lago ali daquele jeito, sendo que estávamos em um ponto totalmente urbanizado da cidade?
Era do tamanho de uma entrada de garagem dos condomínios normais, larga para a passagem de carros, mas pequena para entrada de um caminhão. O que mais intrigava era o formato que possuía. Era exatamente circular, como se alguma coisa tivesse sido jogada ali.
Aquilo era muito estranho porque, o máximo de um lago e mato que você encontraria na cidade seria em livros de biologia ou em parques governamentais.
– Por que tem estamos nesse lago? – perguntei, fazendo-o olhar para trás e estreitar os olhos
– Você só sabe perguntar as coisas guri? – ele se abaixou e pegou um tanque de oxigênio e uma mascara no meio do mato alto, em um ponto em que o chão já ficava lamacento.
– Aah cara, me desculpa mas não vou nadar nisso nem a pau! – esganicei, voltando para onde a terra era firme e seca.
– Tudo bem, não vou te obrigar, mas não me encha a paciência com essa lorota de “resposta” “o que você é? O que eu sou?” – ele ralhou, jogando o tanque novamente no mato, dando um "baque" surdo.
– Eu nem tenho outra roupa para pular, você acha que vou voltar todo molhado para casa, tirando que isso é loucura! Isso é só um lago, para que precisaria de um tanque de oxigênio?
Ele pegou novamente o tanque e a mascara, me entregou e sorriu:
– Para ir para minha casa.
Com um forte suspiro, fechei os olhos tentando decidir o que iria fazer. Ele tirou a minha blusa (me fazendo virar de costas enquanto prendia o tanque e deixava a mochila de lado no mato, me arrependeria disso depois, mas ela não era impermeável ) e ouvi ele pulando no lago, sem equipamentos:
– Você não vai usar? – perguntei me esquecendo por um segundo o fato de ele ser o “Homem Animal” e provavelmente não precisar de nada para se transformar em um peixe ou algo parecido.
– Acho que não – ele deu um mergulho e um flash transformou o lago de um verde escuro em branco total por um segundo. Uma coisa escura havia submergido, parecia ser uma serpente parada bem no centro, totalmente negra com uma grande listra que percorria por todo o seu corpo.
– Você é quem sabe – pulei no lago com aquele equipamento pesado tendo total certeza que ainda conseguiria ficar com a cabeça para fora d’água, mas como sempre, me enganei.
Não necessitava de óculos para conseguir enxergar a minha volta, pois tudo era barro lamacento, não havia lago, mas sim um buracão com o mesmo formato, como se o lago a cima fosse uma fachada para o que se encontrava há baixo.
A única direção que era possível nadar era para baixo, um buraco fundo. Embaixo dos meus pés, havia uma serpente d’água fazendo círculos perfeitos em volta do meu pé, e com uma manobra começou a descer, comigo em sua cola.
No fundo desse “buraco”, a mais ou menos vinte ou vinte e cinco metros, tinha uma roda de ferro que brilhava fracamente.
Mesmo que minha visão estivesse mais aguçada sem óculos, embaixo d’água as coisas continuavam embaçadas e sem forma definida, mas quando estava a uma distância em que minhas mãos poderiam segurar a roda eu consegui ver o que ela era.
Uma porta com uma alavanca que poderia se puxar para cima, mesmo embaixo daquela água lamacenta a “porta” parecia totalmente nova, tinha até um toque de brilho, como se tivessem jogado ela ali ha pouco tempo.
Vi a serpente d’água ficar em volta da alavanca e tentar puxá-la para cima, percebi que não conseguiria, eu a puxei.
No mesmo instante senti uma força me puxando pelo umbigo, como se um anzol tivesse me fisgado. Fui jogado numa cabine prateada com toda a água a que me cercava um segundo antes, o tanque de oxigênio batendo forte no ferro ecoando tudo a minha volta e quando tentei abrir os olhos, um forte flash me cegou fazendo soltar um urro de raiva e fechá-lo novamente.
A água que caia fortemente sobre minha cabeça havia parado, soltei as amarras que tinha feito para segurar o tanque, fazendo cair das minhas costas, então tentei abrir os olhos novamente.
Havia água na altura do meu tornozelo e Jason estava parado ao meu lado, sua barba encharcada e pingando.
– Bom, demoramos, mas chegamos, seja bem vindo – disse ele, andando para uma porta com uma grande alavanca de ferro que eu ainda não tinha percebido.
Quando abriu me surpreendi com o que vi.
Estava diante de uma enorme sala, pintada de azul claro com uma listra finíssima branca que passava pelo centro de toda a sala, com tudo de bom que se pode imaginar.
Havia uma enorme televisão de LCD de provavelmente mil polegadas, vários vídeo games diferentes ligados, computadores, fliperamas, guitarras e vários outros instrumentos musicais. O sonho de qualquer adolescente.
Ao centro de tudo isso havia uma poltrona vermelha de chintz ao lado de um grande livro, onde Jason se sentou, rodando a cadeira para ficar de costas para mim.
Aos poucos vi cabelos caindo, a barba suja no chão e não consegui segurar a pergunta:
– Jason está tudo bem?
– Bom, quer saber o que somos? – virando novamente a poltrona para ficar de frente para mim, e o Jason que eu vi me assustou por um segundo.
Sentado na cadeira não havia nenhum mendigo, mas sim um homem de pele clara, com olhos vivos e brilhante e se percebia alto mesmo sentado. Cabelos negros profundos, com uma pequena listra que começava na testa, no começo do cabelo e ia até o fim, que batida em seus ombros, ondulados.
Ele já estava vestido quando se levantou, com um macacão azul escuro, que estava justo ao seu corpo, como uma roupa de mergulho.
– Somos morfos, seres diferentes de qualquer outro nesse mundo. Somos homens e mulheres que nasceram com uma diferença genética muito rara. Temos o dom de nos transformar em qualquer tipo de animal que desejarmos, contanto que tenhamos um treinamento de liberação a esse animal, como se fizéssemos uma missão para conseguir abrir a genética dele sobre nós.
– Como assim, diferença genética? Tem mais de você por ai? – perguntei assustado, evitando o "nós".
– Ah sim, existem muito de nós, mesmo sendo raro, acontece com muita freqüência, eu posso ser considerado um morfo jovem, enquanto a você, um novato.
– Por que aconteceu comigo, isso com certeza não é sorte, ou é? Por que não com outro garoto?
– As pessoas estão destinadas a essa vida, já nascem assim e não tem escolha. São gerações e gerações puladas até ela voltar em uma família, o seu tataravô pode ter sido um morfo, ou até mesmo o seu pai, sempre há uma ligação – me respondeu sério – mas você precisa saber uma coisa, não são todos de nós que são considerados “bons”, a maioria é selvagem e até mesmo maligna. Não é o meu caso, se acalme, não sinto necessidade em machucar as pessoas por simples prazer da raça – falou olhando minha reação - Normalmente caçamos as pessoas que nos interessam principalmente por cheiro, carne ou até mesmo motivos pessoais, e quando começamos, viramos maquinas de matar.
Meu coração parou, como se uma bomba tivesse acabado de explodir dentro de mim.
– Raissa! Tem algum morfo atrás dela? – perguntei imediatamente, não fazia sentido ele SÓ querer que eu a acompanhasse até sua casa.
Ele me olhou sério, mas não respondeu.
– Costumamos andar em bandos, de quatro ou cinco integrantes no máximo. Normalmente quando um membro do bando sente uma pessoa “aceitável” (como costumamos dizer), ele a caça até o ultimo segundo de vida de um dos dois. Infelizmente descobri a algumas semanas que tem um grupo de norte-americanos tirando férias no nosso país, e um deles se interessou pelo cheiro da sua amiga.
A bomba continuou a destroçar, fazendo um zumbido fraco ecoar em meus ouvidos.
– Quem?! Quem é?! – gritei sentido meus dentes tremerem – Temos que protege-la!
– Se acalme, tente se recordar. Hoje de manhã, quem estava com uma aparência estranha no momento em que nos conhecemos, tirando minha pessoa, é claro! – disse tentando descontrair a tensão.
Tentei me lembrar da manha que se passara, parecia ter acontecido ha tanto tempo, mas consegui ver um pequeno vislumbre de uma mulher com uma pasta, olhando atenta a todos a sua volta.
– A mulher com a pasta? – arrisquei.
– Exatamente, ela sentiu que seu cheiro era diferente das outras pessoas, como eu – ele olhou para o teto, como se pudesse ver através do ferro – ela nos seguiu até o seu colégio, por isso fui com você, para mostrá-la que não estava sozinho, mas infelizmente acabei arriscando a vida de uma pessoa com isso...
– Não... – falei com uma voz rouca, o peito ainda explodindo, me sentei no chão tentando pensar – não posso deixá-la mais sozinha.
– Eu ainda não acabei – ele falou aborrecido – tem mais algumas coisas que precisa saber.
– Fale rápido estou com pressa – meu coração batia tão rápido que poderia parar a qualquer segundo, e estava sentindo como se estivesse levando vários beliscões no corpo.
– Bem, quando nos transformamos pela primeira vez, ativamos um instinto de proteção e um ligamento fatal. Essa pessoa que nos liga, será o motivo para voltarmos ao normal quando mudamos de forma, sem ela seriamos animais para sempre, o ser humano com sua capacidade de pensar e amar com expressões acabam nos dando esse... incomodo por assim dizer.
Não precisei pensar para saber sobre quem era aquela pessoa para mim, mas uma coisa me incomodou.
– Quem é essa pessoa para você? – perguntei fazendo careta.
– Isso não interessa no momento – ele olhou para os lados, tentando disfarçar, mas quando virou para olhar para mim, seus olhos estavam azul muito claro, quase brancos.
– Então, rápido, continue – falei ainda pensando.
– Certo. Quando ocorre esse tipo de ligamento entre um morfo é um laço inquebrável. Mas o nosso real problema é que, o bando norte-americano está todo entrelaçado, a mulher que nós encontramos naquele vagão tem a ligação com o que podemos chamar de “chefe do bando”.
– Isso significa que se eu for caçá-la, todos me caçarão?
– É o mais provável – sua voz parecia ser de alguém que acabara de presenciar uma morte.
– Quero saber com quem você tem ligação, acabou de falar que só pode voltar a ser humano por causa de uma pessoa, quem? – eu tinha uma leve impressão da resposta.
– Ela não está mais aqui – resmungou, seus olhos continuavam no mesmo tom.
– Como assim, não está...
– Tudo bem, também era uma morfo, só que ela não se ligou a mim, foi com... outro.
Um choque passou por minha cabeça.
– Ah, não vai me dizer que... – eu não teria acreditado se não tivesse visto a expressão de seu rosto.
– Sim. Era ela, a nossa companheira do trem – ele olhou para o teto – por que você acha que estava vestido como um imundo? Precisava disfarçar o cheiro – ele voltou o olhar para mim, seus olhos ganhando cor – acho que a ultima coisa que precisa saber é como acabar com nós mesmos.
– Sim...? – perguntei, queria fugir do assunto.
Acredito que qualquer um a esse momento poderia ouvir meu coração batendo fortemente, me fazendo sentir dor.
– Metais enferrujados, é a única coisa que realmente nos feri, podemos tomar um tiro, ser tacados de lugares altos, vamos sentir dor, nos arrebentar, mas nada se compara a aço enferrujado.
Não falei nada por alguns segundos, ele provavelmente deve ter pensado que achei uma piada o único jeito de um humano anormal poder ser ferido, e realmente achei.
– Vou contar com você para desenvolver minhas transformações e habilidades? – perguntei abrindo um sorriso.
Ele abriu um largo sorriso e disse:
– Claro, e você precisa saber de mais uma coisa, não dormimos depois de nossa primeira transformação.
Então caí no chão, vencido pela dor em meu peito e senti todo o meu corpo esquentar, como se tivesse sido jogado em uma panela com água fervente, fechei os olhos e gritei.
Essa história pertence a Guilherme Freitas de Aguiar,
O Escritor.
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